Roger Maioli
Como fazer doutorado em humanas nos EUA
Updated: Apr 28, 2020
Meus amigos brasileiros com frequência me perguntam como é que se ingressa numa universidade americana para fazer doutorado em áreas como história, filosofia ou literatura. Muitos sabem que brasileiros podem vir aos EUA para um doutorado parcial (o famoso sanduíche) ou mesmo integral, com bolsas da CAPES ou do CNPq; também sabe-se que é possível pagar do bolso para cursar certos programas de mestrado. Mas no atual estado de crise no financiamento da pesquisa brasileira, vale perguntar: dá para fazer o doutorado integral nos EUA na área de humanas, sem bolsa de instituição externa?
Dá. Infelizmente existe pouca informação a respeito no Brasil, e por isso resolvi descrever esse roteiro aqui. Para começar vão algumas informações básicas e um alerta.
O básico
Primeiro as boas notícias: as universidades americanas têm processos seletivos anuais para o doutorado, com prazos de inscrição normalmente em dezembro, e esses processos estão abertos igualmente para alunos americanos e estrangeiros. Não é preciso comparecer em pessoa; o processo é todo a distância. A outra boa notícia é que as universidades americanas não requerem o mestrado para o ingresso no doutorado. É isso mesmo: quem tem só a graduação pode se candidatar normalmente.
Por fim, diversamente do que ocorre em outras partes do mundo como na Europa, o processo de admissão nos EUA também vale como processo para obtenção de bolsa. Se você obtiver admissão no doutorado em humanas em universidades particulares como Harvard, Princeton, Cornell, ou Northwestern, ou em certas universidades públicas na Califórnia, na Flórida e em outros estados, o suporte financeiro vem junto.

O motivo para essa diferença é que o doutorado nos EUA é estruturado de maneira diferente dos programas da maioria dos outros países. Em países como o Brasil, o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Índia ou a Austrália, o doutorado é um programa sobretudo de pesquisa. O doutorando precisa cumprir um pequeno número de créditos fazendo cursos, mas o componente principal é pesquisar e escrever a tese. Nos Estados Unidos é diferente. Os programas são concebidos para formar professores, e por isso também oferecem treinamento em ensino. Os doutorandos devem, como requisito para se graduarem, dar cursos de graduação por vários anos. E recebem por isso. Daí a "bolsa" automática: com frequência a remuneração que o doutorando recebe é na verdade um estipêndio por serviços prestados. Isso inclui um plano de saúde e a remissão da chamada tuition (o equivalente americano das mensalidades).
Não é assim todos os anos. Universidades com orçamentos mais generosos conseguem oferecer bolsas de pesquisa pura por um ou dois anos. Mas mesmo nessas, o modelo mais frequente é que o doutorando dê aula para receber.
Isso tem seu lado bom e seu lado ruim. O lado bom é que, caso a sua ambição seja dar aula e você não tenha experiência prévia, o doutorado vai proporcionar essa experiência. (Um modo menos bonito de contar essa história é dizer que doutorandos são mão-de-obra barata comparados com professores efetivos, e é por isso que esse requerimento vem embutido no programa: as universidades poupam dinheiro pagando pelo seu doutorado em troca do seu serviço.)
O lado ruim (e eis aqui o alerta) é que essa diferença estrutural significa que os programas de doutorado nos EUA são muito mais longos do que em outras partes do mundo. Vamos ver por quê.
Um problema: a duração dos programas
No Brasil e nos países europeus, um doutorado em humanas dura de três a cinco anos; nos EUA, a média nacional para um doutorado em história ou literatura está entre sete e oito anos (dados aqui); campos como a educação ou ciências sociais como a antropologia têm médias ainda mais altas. Esses números têm caído por motivos complexos relacionados à crise universitária americana, mas continuam sendo uma longa parte da vida.

Isso é um fato pouco conhecido mesmo entre candidatos americanos. Em geral, departamentos de humanas anunciam em seus websites que seu programa de doutorado é de "cinco anos", ou raramente seis (vejam aqui o exemplo de Princeton). A impressão que isso cria é que os doutorandos se formarão em cinco ou seis anos. Mas não é verdade. Esse anúncio significa duas coisas: primeiro, que os requisitos formais para a conclusão do programa (como cursos, exames qualificativos e outras atividades obrigatórias) são distribuídos ao longo de cinco anos; e, segundo, que a garantia de bolsa ou estipêndio se estende por esses cinco anos. Mas na prática a absoluta maioria dos doutorandos chega ao final do quinto ano sem ter concluído ou defendido a tese (que inglês se chama dissertation). Concluem-se os cursos, fazem-se as provas e tudo o mais, mas a tese quase sempre exige alguns anos a mais. É possível (e ideal) terminar o doutorado dentro dos cinco anos, ou levar apenas um ano a mais. Eu terminei em sete, bem dentro da média. Conheci gente que terminou em cinco ou seis, e conheci gente que levou doze ou treze anos para se formar.
Esses anos adicionais são uma fase delicada do doutorado nos EUA, porque na maioria das instituições a bolsa oficialmente acaba depois do quinto ano. Ainda é possível, nas escolas maiores e de mais recursos, dar aulas e assim manter a renda por alguns anos adicionais; em outras universidades o doutorando pode se ver à deriva, tendo de arrumar outras fontes de renda e se virar para terminar a tese. Alunos estrangeiros são especialmente vulneráveis a essa situação, já que existem restrições legais que limitam suas oportunidades para o trabalho assalariado. Saber de antemão que os programas são longos é essencial, sobretudo se você for aluno estrangeiro.
Os programas e seus requisitos

Essa longa duração se deve não apenas ao fato de que nos EUA os doutorandos têm de atuar como professores. Os programas também requerem que eles façam muito mais cursos do que é o costume em outros países. O programa que eu cursei (no departamento de literatura inglesa da Universidade Johns Hopkins) começa com dois anos de cursos obrigatórios. No primeiro ano os doutorandos fazem três cursos por semestre; não precisam dar aulas, e recebem bolsa em vez de estipêndio. No segundo ano os cursos caem para dois, e o doutorando atua pela primeira vez como monitor (teaching assistant), auxiliando professores e liderando grupos de discussão. Só no terceiro ano começa-se a dar aula como instrutor. Esse ano também envolve duas provas orais que exigem pelo menos um semestre de preparação. Isso quer dizer que a pesquisa para a tese só começa para valer em fins do terceiro ano de doutorado, quando alunos na Europa já estão na fase final do programa.
Essa carga maior de cursos, a meu ver, é um dos principais atrativos dos programas americanos. Esse cursos são seminars — mesas redondas com poucos alunos (de quatro a doze pessoas por sala) em que o professor atua como moderador. Eles proporcionam um ambiente em que o doutorando exerce intensivamente uma práticar fundamental da carreira acadêmica: discutir, espontaneamente, textos primários e secundários de diversos graus de dificuldade, com outras pessoas que também os leram, e assim desenvolver a habilidade de pensar em conjunto, de fazer e responder a perguntas, de defender as próprias ideias mas também abrir-se a críticas quando parecerem justas. O objetivo desses cursos, menos que a mera transmissão de conhecimento, é criar para os alunos um microcosmo do mundo acadêmico em que eles pretendem ingressar, um espaço em que possam praticar o tipo de conversa que a experiência mais passiva da graduação não possibilita. Sempre é necessário escrever e apresentar papers, simulando-se o ambiente de congressos, e o trabalho final serve como treinamento para a escrita de artigos.
Uma outra vantagem do modelo americano de doutorado é que ao fim da conclusão dos cursos o doutorando recebe o grau de mestre. Isso quer dizer que os programas de doutorado vêm com um mestrado embutido. Por isso é possível candidatar-se direto da graduação.
Em suma: os programas nos EUA são mais longos, incluem mais cursos e exigem atividade como professor; mas também oferecem um treinamento profissional mais diversificado para quem pretende seguir a carreira acadêmica; e, acima de tudo, vêm com bolsa garantida por cinco ou seis anos.
Como ingressar?
Voltemos então à pergunta inicial: como é que se ingressa?
Como eu disse acima, a maioria das universidades promove processos seletivos anuais, com prazos em dezembro ou janeiro. Para se inscrever é preciso enviar ao departamento vários tipos de documentos. Para o aluno americano, os componentes básicos são estes:
• O Statement of Purpose: um documento de duas páginas descrevendo interesses acadêmicos, experiências relevantes e expectativas quanto ao programa. Bons programas oferecem diretrizes sobre o que o documento deve incluir; vai um exemplo.
• Um Curriculum Vitae.
• Uma amostra de escrita: um texto de 12 a 20 páginas (varia por escola) que ilustre seu potencial como pesquisador na sua área. Na maioria dos casos terá de ser em inglês.
• Três cartas de recomendação escritas por professores que conheçam o seu trabalho acadêmico.
• Uma cópia dos históricos escolares do ensino superior.
• Um teste de conteúdo chamado GRE, feito à parte e antes do prazo de inscrição.
• O aluno estrangeiro terá certos requisitos adicionais. É preciso, por exemplo, fazer o teste de inglês do TOEFL e preparar uma tradução juramentada do histórico escolar.
Esses são os requisitos mais comuns. Mas cada escola pode ter os seus requisitos específicos, e o caminho é pesquisar. Aqui vão algumas dicas:
• Os sites das universidades americanas são confusos e difíceis de navegar para quem está começando. Para conseguir informações sobre o processo de admissão, vá direto ao site do departamento relevante. Digamos, por exemplo, que você queira se candidatar ao doutorado em filosofia em Cornell. Vá ao Google e digite “Cornell Philosophy Graduate Program” (sem as aspas); para o doutorado em literatura inglesa em Stanford, digite “Stanford English Graduate Program” (sem as aspas). Isso o levará muito mais rapidamente à página correta. Procure links para “Admissions” ou “Application Procedures”. A lista de requisitos estará lá. Tenha em mente que nos EUA não há cursos de “letras”. Departamentos de literatura inglesa são sempre “English Departments”, de literatura brasileira são com frequência “Spanish and Portuguese Departments”, e há uma variedade de outros termos.
• Comece cedo. Embora o prazo de inscrição seja normalmente em dezembro, esses documentos são difíceis de preparar, e os testes do GRE e do TOEFL podem requerer agendamento com grande antecipação. Para se inscrever em dezembro, comece a se preparar em março ou abril.
• É comum, para o doutorado em exatas, o candidato a doutorando entrar em contato com um possível orientador. Isso não é necessário para o doutorado em humanas, e não vai afetar as suas chances. Também não machuca contatar professores se você tiver genuíno interesse em seu trabalho. Mas professores não "admitem" alunos; a seleição é feita por um comitê.
• Infelizmente nem todas as universidades americanas oferecem bolsa ou estipêndio para alunos estrangeiros. A Universidade da Virgínia, por exemplo, é uma excelente instituição, mas como universidade pública muitos de seus departamentos só custeam alunos americanos. Assim, pesquise: inscreva-se apenas nos programas que oferecerem funding packages para alunos estrangeiros. Em caso de dúvide, contate o departamento. A melhor pessoa para contatar é o Director of Graduate Studies.
• Pesquise muito na hora de escrever os seus documentos, sobretudo o Statement of Purpose. Há bons modelos na internet.
• Tenha em mente que seus professores também precisarão de um prazo elástico para escrever as suas cartas de recomendação. Evite pedir a carta em cima da hora. Três meses de antecipação são um prazo razoável. Lembre-se, também, de que a carta terá de ser em inglês. Caso seu professor não domine o idioma, será necessário traduzi-la. Vai um modelo.
• Não se deixe intimidar pelo prestígio da instituição. Se o melhor programa para você estiver em Harvard ou Yale, inscreva-se. Mas vale a pena inscrever-se em vários programas, de 10 a 15. (Mais do que isso custa caro; existe uma taxa de inscrição, e os materiais não saem de graça.) Maximize suas chances, mas não deixe de tentar os melhores programas.
• Lembre-se de que o melhor programa de doutorado não está necessariamente na universidade mais famosa. Os rankings universitários normalmente medem a reputação dos cursos de graduação; existem rankings específicos para os programas de pós. Pode ser que o melhor programa de doutorado na sua área esteja em Harvard ou Columbia ou Princeton; mas pode ser que esteja numa universidade menos conhecida. (Por exemplo, a Universidade de Iowa tem o programa mais prestigioso dos EUA em Creative Writing.) Também é importante pesquisar o corpo docente: o ideal é entrar num programa que tenha no mínimo dois professores na sua área de especialização, de preferência mais. Como em outras áreas, aqui a regra é simples: pesquise bastante.
Acima de tudo, boa sorte!